No interior de Alagoas, no pequeno município de Coité do Noia, nasceu Marta Oliveira, a mais nova dos quatro filhos de Dona Severina Severiana, uma alagoana que criou praticamente sozinha a garotada e que fez questão de que todos completassem os estudos. Marta, logo se vê, é uma menina fora do padrão. A pele alva e a farta cabeleira cacheada cor de cobre fazem com que ela ganhe destaque na multidão, mas o que mais chama atenção na moça são seus olhos esverdeados, ávidos por enxergar além do que o mundo oferece. Marta vive em um mundo de sonhos.
Os sonhos da menina de 17 anos, tal como ela, são diferenciados, cheios de números e formas geométricas. Assim também são seus ídolos, que não são os cantores internacionais ou atores de cinema. “Admiro muito Gauss”, afirma, sorrindo, abraçada a um livro. Ela começa a discorrer uma verdadeira aula sobre a vida de Carl Friedrich Gauss, conhecido como “o Príncipe da Matemática”, que viveu no século XVIII e se destacou no estudo da Teoria dos Números. Não à toa, a Teoria dos Números é exatamente o objeto principal de estudo das pesquisas de Marta, o que explica seu fascínio pelo personagem histórico.
Para entender melhor a história de Martinha, como ela é conhecida por professores e amigos, é preciso voltar, não tanto quanto ao século XVIII, mas para 2010, quando ela tinha 12 anos e estava no 8º ano do Ensino Fundamental. Nesse ano, ela participou pela primeira vez da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas e recebeu uma medalha de bronze. O prêmio a colocou no seleto grupo de alunos participantes do Programa de Iniciação Científica Jr., o PIC. No entanto, como participar de um programa que oferece aulas virtuais quando sua casa não tem acesso à internet e, vez em quando, sequer energia elétrica? Foi aí que um professor com muito amor pela profissão e coração aberto entrou em ação.
Josué Lourenço era à época o professor de matemática de Marta e se entusiasmou com a classificação da aluna na OBMEP. Sabendo que a Escola Estadual Álvaro Paes, onde ela estudava, era na zona rural do município e não tinha laboratório de informática, quanto mais acesso à internet, resolveu fazer um esforço extra. Como tinha duas matrículas – a segunda era como diretor na Escola Municipal José de Sena Filho, no centro do município –, resolveu oferecer uma parceria entre as duas instituições de forma a possibilitar o acesso ao fórum do PIC na escola municipal. “A satisfação de um professor é notar o empenho do aluno, e o aprendizado apresentado por ela me motivou a lhe dedicar atenção. E Marta sempre foi uma aluna excepcional”, conta Josué.
O esforço extra, tanto do professor quanto da aluna, rendeu frutos. Logo Marta se tornou uma verdadeira atleta da matemática, colecionando menções honrosas e medalhas tanto em olimpíadas nacionais quanto regionais. “Fiquei mais nervosa quando fiz a regional. De início nem queria participar, porque achava que não ia me dar bem. Sabia que haveria muitos alunos de escolas particulares da capital e ficava pensando como eu, uma menina de uma escola pública do interior, poderia me sair bem nesse meio. Mas o Josué dizia que eu era capaz e me motivou muito”, lembra a menina, mais uma vez mostrando a importância de um professor que sabe identificar e estimular o potencial de seus alunos.
O então responsável pela correção das provas da Olimpíada Alagoana de Matemática era o professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Krerley Oliveira. Deparando-se com a lista de medalhistas, foi pego de surpresa: empatados em primeiro lugar estavam dois rapazes de escolas particulares da elite de Maceió e... uma menina de Coité do Noia, município de 12 mil habitantes, a 130 quilômetros da capital. “Me chamou a atenção primeiro por ser uma estudante da rede pública empatada com outros de colégios particulares tradicionais, depois por ser do interior”, lembra Krerley. A surpresa não parou por aí. Curioso, ele foi buscar os dados da menina e encontrou seu e-mail: marta.sonharepossivel@.... “Não contive a emoção”, conta o professor que hoje é orientador de Marta.
Se sair da zona rural, onde a família vivia da plantação em seu sítio, para fazer as aulas virtuais do PIC no “centro” de Coité já era uma viagem para Marta, imagine o “choque de realidade” que foi ir a Maceió para receber a medalha da competição regional... Entretanto, a viagem que mais marcou a então menina foi a ida a Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, para o Encontro do Hotel de Hilbert. Nomeado a partir do paradoxo matemático homônimo, o encontro é uma reunião nacional dos alunos com melhor desempenho no PIC. Durante cinco ou seis dias nas férias de meio de ano, eles se dedicam totalmente à matemática, orientados por alguns dos melhores professores da disciplina no país. “Foi uma das melhores experiências da minha vida. Sinto muitas saudades até hoje. Ali fiz amigos e aprendi um bocado de coisas incríveis", lembra Marta, com os olhos brilhando.
Conhecido entre os alunos do PIC apenas como EHH, o encontro é não apenas uma vivência acadêmica, mas uma experiência pessoal. Para Marta, foi sua primeira viagem para além de seu estado - a primeira vez em que esteve bem longe de sua família e, principalmente, onde se sentiu entre iguais. “Ali eu vi que havia outras pessoas como eu, que se divertiam com matemática e que viam a sua beleza”. A menina descreve a disciplina como algo “apaixonante”, e os seus grandes ídolos são matemáticos alagoanos, em especial o professor Elon Lages Lima, pesquisador emérito do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), e Fernando Codá, que realizou o Mestrado no Instituto. Dona de uma verdadeira coleção de livros de matemática, os quais trata como tesouros, Marta mostra orgulhosa as dedicatórias dos autores em alguns deles. Os de autoria do professor Elon ainda aguardam por sua assinatura. “Nossa, seria um sonho!”, anima-se a menina ao pensar em um possível encontro com o ídolo.
Marta optou pela matemática no vestibular e, para orgulho de sua mãe, foi a terceira filha a entrar na universidade, conseguindo classificação para a UFAL. A mudança para a capital não foi das mais suaves, e ainda nos primeiros meses, considerou voltar para casa: “Eu estava acostumada à vida na zona rural, ao meu canto, a outro ritmo. Houve momentos em que me perguntava se valia a pena todo esse esforço, ficar longe da minha família, se não era melhor voltar para Coité e arrumar emprego por lá. Até que o Krerley apareceu”. O professor, que acompanhava sua carreira acadêmica desde a medalha na olimpíada regional, viu que Marta havia passado para a universidade onde dava aulas e convidou a menina para trabalhar em uma linha de pesquisa. “Ela estava um pouco perdida quando chegou, mas logo se saiu muito bem. A Marta é uma pessoa batalhadora - quando quer, corre atrás até conquistar seus objetivos”, elogia.
Hoje, Marta está no segundo ano da graduação. Sua pesquisa, sobre a Teoria dos Números, já rendeu uma palestra na UFAL e ruma para se tornar uma tese de mestrado. “Mas ainda tem muita coisa até lá. Quem sabe no próximo ano eu ainda faço um curso de verão no IMPA? Seria incrível conhecer o professor Elon”, diz a jovem, em tom desafiador. Ela afirma que torceu muito para que Codá, o outro ícone alagoano, recebesse a Medalha Fields no último Congresso Internacional de Matemática, em agosto de 2014. “Foi uma pena ele não ter ganho, mas o Artur Ávila é um grande matemático também e todos ficamos muito orgulhosos. E ainda dá tempo para o Codá ganhar a medalha no próximo, que vai ser aqui no Brasil, em 2018”, diz, esperançosa.
Quando indagada sobre o futuro, a jovem graduanda de matemática diz que seus grandes desafios agora são concluir a graduação e conseguir fazer o mestrado e o doutorado na UFAL mesmo ou, quem sabe, no IMPA. “Quero muito me tornar uma grande pesquisadora e também dar aulas em universidades”, diz. A menina que saiu de Coité do Noia e já chegou tão longe sabe que, como seu próprio endereço de e-mail indica, sonhar não só é possível como vale a pena.